Quem costuma ler este blog sabe que venho tratando com certo desdém e ceticismo a decretação de "estado de calamidade financeira" em Marabá pelo prefeito Tião Miranda, uma medida cogitada desde meados de dezembro. Cheguei a elogiar o prefeito pelo equilíbrio no dia da posse ao não se referir a decretação de calamidade como medida imediata. Ao ler o decreto publicado hoje por Tião sobre a tal calamidade, vejo que o prefeito erra ao nominar "calamidade" o que calamidade não é.
Explico minha posição: do ponto de vista legal, nada aponta para a existência em tese dessa tal "calamidade financeira". De fato, estado de calamidade, segundo a legislação, decorre de evento da natureza, imprevisível e sobre o qual os homens não têm qualquer controle, e que causam estragos de tal monta que inviabilizam o total funcionamento da máquina administrativa.
O "estado de calamidade financeira", este digamos, "ornitorrinco jurídico", foi criado no Estado do Rio de Janeiro (que já nos deu também os bailes funk, os arrastões na praia e o Comando Vermelho), para permitir socorro financeiro da União Federal suficiente para garantir a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos no ano passado, depois que o governador Pezão - peço desculpa pelo trocadilho infame - meteu os pés pelas mãos e enrolou-se em dívidas ao tentar cumprir os compromissos assumidos com o Comitê Olímpico Internacional, além de oferecer reajustes salariais ao funcionalismo que iam muito além da capacidade do Rio de Janeiro em ampliar sua arrecadação.
A partir daí, alguns gestores de estados e municípios usam essa nomenclatura para tentar alcançar as "vantagens" decorrentes do estado de calamidade: suspensão e parcelamento de pagamentos, suspensão da execução de investimentos previstos no Orçamento, liberdade para descumprir qualquer meta fiscal estabelecida e, principalmente, liberdade para contratar obras e serviços sem licitação.
Devemos dar graças porque nem sempre os gestores conseguem alcançar seus objetivos!
O estado de calamidade, quando reconhecido pela União e pelo Estado (no caso dos municípios), costuma ser um cheque em branco para o gestor gastar como, quanto, quando e onde quiser. E costuma também propiciar um festival de falcatruas de fazer corar até mesmo Zé Dirceu.
Claro está que desequilíbrio entre despesas e receitas públicas está muito longe de ser evento cataclísmico e imprevisível. Ao contrário, desde meados de 2014, 90% dos municípios brasileiros passam por sérias dificuldades para fechar suas contas e isso tem sido divulgado com frequência por todos os meios de comunicação. É fato, portanto, conhecido.
Além disso, como estados e municípios não podem pedir concordata ou falência, a legislação permite a negociação de suas dívidas e oferece diversos mecanismos de controle de gastos que devem ser usados em casos de desequilíbrio financeiro. Antecipação de Receita Orçamentária (ARO), programas de combate à sonegação fiscal e incremento de receita, são apenas alguns dos recursos colocados à disposição do gestor municipal. Basta querer e saber usá-los.
A "calamidade financeira" poderia ser cogitada no caso de iminente interrupção de todos os serviços públicos e total incapacidade de pagamento por parte da Prefeitura. Isso nem de longe é verdade aqui em Marabá. Também não se tem notícia aqui de um excessivo comprometimento de receita futura por parte do município ou de serviços públicos sob risco de colapso.
Por outro lado, vamos deixar claro que as dificuldades financeiras de Marabá eram de total e absoluto conhecimento por parte de Tião Miranda e dos membros de sua equipe e será muito difícil convencer alguém do contrário.
É bom lembrar que nem mesmo os mais encarniçados oponentes de João Salame dizem que a transição em Marabá descumpriu o que determina a lei. Isso é reforçado pelo fato de que não houve sequer uma denúncia de cerceamento ou retenção indevida de informação. Os agentes nomeados pelo então prefeito eleito Tião Miranda tiveram amplo acesso a todos os números da Prefeitura. E disso devem ter feito bom proveito. Ou será que não?
Não posso deixar de lembrar que um dos maiores especialistas nas finanças públicas de Marabá era presidente do Ipasemar na gestão de João Salame, e hoje é secretário de Planejamento de Tião Miranda e integra o tal "Gabinete de Crise". Ou seja, Tião Miranda tinha total e pleno conhecimento da situação do município. Portanto, não está presente o conteúdo imprevisível que justifique a decretação de calamidade.
Menos mal que Tião Miranda não avançou o sinal e manteve o decoro ao respeitar o processo licitatório enquanto pré-condição para a contratação de obras e serviços.
Por que Tião não se livrou do processo licitatório? Porque não existe, na verdade, "estado de calamidade financeira" em Marabá. E suprimir o processo licitatório sem justa causa atrairia a atenção do Ministério Público e aí entraria água no chopp (ou no martíni)!
Assim, sem um estado real de "calamidade" para chamar de seu, Tião Miranda acabou nomeando um comitê para controlar o gasto público, centralizando as despesas feitas com recurso próprio, vedando hora extra e autorizando o comitê - garbosamente chamado agora de "Gabinete de Crise" - a promover a reforma administrativa com a extinção ou fusão de secretarias e a demissão (e por óbivo, a nomeação) de funcionários contratados.
Ou seja, Tião fez de forma amplificada em janeiro de 2017, basicamente o que João Salame já havia feito, em menor escala, em agosto de 2015!
Sendo assim, para que serve, então, a decretação desse estado de calamidade inexistente?
Serve para colocar na conta da "calamidade" as medidas amargas que precisam ser tomadas e dar revestimento legal para o processo de centralização administrativa que coloca todo o poder e o controle do orçamento e dos serviços públicos de Marabá nas mãos do prefeito, do vice e de três super-funcionários públicos.
Serve para subtrair da análise da Câmara a extinção de cargos e secretarias.
Serve para colocar, eventualmente, nas costas do prefeito anterior a responsabilidade pelo "estado de precariedade da estrutura física e burocrática do Município".
Serve para selecionar quais contratos devem ser honrados ("perdida" lá pelo meio do artigo 9º, está a autorização para rescindir "contratos de outra natureza").
Serve também para Tião fazer a necessária "marquetagem", mostrando-se um gestor "proativo" (para usar uma expressão da moda), "preocupado com o pagamento dos salários dos contratados", "disposto a enfrentar a crise". Assim, o decreto serve para polir a imagem de Tião um bocado arranhada pelas idas e vindas que antecederam sua posse.
Serve para dar um naco extra de poder ao vice Toni Cunha, que também foi colocado em posição vexatória graças às renúncias sucessivas de Tião antes da posse.
Sinceramente, acho pouco provável que um decreto como esse produza seus frutos nos casos de retenção de pagamentos de produtos e serviços devidamente contratados e empenhados. Acredito que não sobrevive ao crivo do Judiciário, mas de qualquer forma o prefeito pretende mesmo é ganhar tempo para tomar as medidas exceptas que julgar conveniente. E aposta que, com a velocidade alucinante da Justiça, é capaz do decreto nem existir mais quando uma decisão judicial finalmente for exarada. Aí, o estado de "calamidade" de Tião já terá cumprido sua função.
Por ora, nestes tempos conturbados que vivemos, vamos todos torcer para que o decreto de Tião sirva para Marabá e não para que outros se sirvam de Marabá. Mas, isso já é assunto para outro post.
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