20 de março de 2012

Sobre Curió, Estado Democrático de Direito e estátuas de sal

De vez em quando formulações jurídicas heterodoxas brotam para estabelecer contenciosos inúteis. Entendo que fazem parte da democracia. É próprio do Estado Democrático de Direito permitir que interpretações normativas, ainda que errôneas, venham a ser apreciadas pelo Poder Judiciário. O direito a um provimento jurisdicional por parte de um Juízo competente e segundo as regras estabelecidas é fundante para o ambiente de segurança jurídica que deve nos cercar.
Neste contexto deve ser entendida a tentativa do Ministério Público Federal no Pará (MPF/PA) em ver processado e julgado Sebastião Rodrigues Curió, por crimes de sequestros cometidos contra guerrilheiros na região do Araguaia, durante o regime militar.
Entendo que não existe a mínima base jurídica para pleitear o punição contra Curió. O MPF/PA até onde enxergo, está dando tiros n'água. Talvez faça bem aos princípios ideológicos de seus membros, talvez sintam necessidade de mostrar serviço aos seus pares ou à sociedade, sei lá eu. Mas, a verdade é que trata-se de uma interpretação torta da normatividade. Algo muito adequado ao rasteiro "direito achado na rua", versão esquerdopata das Ciências Jurídicas que deseduca e ideologiza o direito positivo.
Entendo que subsiste o direito do MPF/PA pleitear um decisão sobre esta interpretação exótica, mas, o Poder Judiciário tem o dever de negar-lhe a pretensão punitiva.

Vejam lá.
Diz a Lei 6.683, de 19 de dezembro de 1979:
Art. 1º - É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram, crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”
Diz o MPF/PA que o crime de sequestro não prescreve e trata-se de "crime continuado", portanto, estaria sendo praticado até os dias de hoje. Trata-se, claro, de interpretação tola da lei e dos fatos. A razoabilidade impõe que aceitemos como mais provável que se sequestro houve, este redundou na morte das vítimas. Assim, Curió poderia ser acusado pelos homicídios cometidos contra os tais guerrilheiros, mas, não poderia ser acusado por seu sequestro.
O MPF/PA argumenta, por outro lado, que não pretende fustigar a Lei da Anistia. Os crimes praticados por Curió seriam "crimes comuns", puníveis pela legislação ordinária.
Infelizmente, para o MPF/PA, ainda que se pudesse considerar que não tenha havido extinção punitiva no caso de Curió, seus crimes (se realmente os cometeu!) encontram-se, no mínimo, contidos na definição de "crimes conexos" ao teor da Lei da Anistia devidamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
Andou muitíssimo bem o Juiz Federal de Marabá que rejeitou a denúncia do MPF/PA. Os "guerrilheiros" teriam sido sequestrados em função das atividades subversivas que desenvolviam na região do Araguaia, daí a conexão entre o crime comum e o crime político, devidamente alcançado pelos efeitos da Lei da Anistia.
Agora, os bravos procuradores devem bater às portas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e, quem sabe, cheguem ao Supremo Tribunal Federal. Talvez seja um sonho adolescente subir à tribuna da Suprema Corte, ainda que para perder a causa, o ânimo que move esses nossos procuradores. Quem sou eu para "cortar a sina" de alguém, não é? Apenas pondero que Marabá e região convive com estradas federais e estaduais devastadas e abandonadas pelos governo Estadual e Federal; trabalho escravo em profusão; crimes ambientais sendo cometidos por grandes e pequenos produtores; saúde pública em precárias condições; prefeitos e vereadores que desviam alegremente dinheiro público e inúmeras outras mazelas que estão a reclamar a ação vibrante e enérgica do Ministério Público Federal. Pergunto-me por que fustigar uma quimera enquanto a realidade cotidiana exige muito mais atenção!
A Lei da Anistia, senhores procuradores, foi a ponte a permitir a transição pacífica do regime militar para a normalidade democrática. A Lei não beneficiou apenas "torturadores do regime". Ela permitiu, por exemplo, que uma ex-guerrilheira como Dilma Rousseff pudesse alcançar o cargo mais alto da República! Isso por si só já é algo de que podemos nos orgulhar em nosso ordenamento jurídico!
A Lei da Anistia foi a síntese possível que as nossas lideranças nos anos 70 conseguiram construir para reconciliar a Nação com a Democracia. Quem somos nós, homens do século XXI, para julgar os critérios usados por aqueles que pavimentaram nosso retorno ao republicanismo!
Durante a discussão travada em abril de 2010 sobre esta Lei disse, com rigor, a Ministra Ellen Gracie: "não se faz transição pacífica entre um regime autoritário e uma democracia plena sem a existência de concessões recíprocas. A anistia foi o preço que a sociedade pagou para acelerar o processo de redemocratização. Não é possível rever retroativamente a história para que assuma contornos mais palatáveis".
O ministro Cezar Peluso, que naquela ocasião ocupava a presidência da Suprema Corte, afirmou que "a lei não foi uma autoanistia. Assim seria se fosse um ato institucional. O Brasil fez a opção peço caminho da concórdia".
Peluso rebateu a afirmação feita anteriormente pelo ministro Carlos Ayres Britto de que os torturadores eram "monstros". "Monstros não são capazes de perdoar. Só uma sociedade, por ter grandeza e ser maior que seus inimigos, é capaz de sobreviver".
Sinceramente, não se pode exigir que os membros do MPF/PA fixem seus objetivos no futuro. Pede-se apenas que olhem para o presente, sem voltar seus olhos continuamente para o passado, para fugir do risco de tornarem-se estátuas de sal. Assim produzirão o "bom direito" e não ideologia rasteira.

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